TRECHO:
Preste atenção. O Santuário dos Redentores no Penhasco de
Shotover deve seu nome a uma grande mentira, pois há pouca redenção naquele lugar e ele tampouco serve de refúgio divino.
A região à sua volta é coberta de
arbustos rasteiros e vegetação mirrada e você mal consegue notar a diferença
entre verão e inverno, o que quer dizer que faz sempre um frio de rachar a qualquer época do ano. É possível ver o Santuário propriamente dito a quilômetros de distância quando não está encoberto por uma neblina imunda, o que é raro —, com sua estrutura de sílex, concreto e farinha de arroz.
A
farinha deixa o concreto mais duro do que pedra, e esse é um dos motivos que possibilitaram à prisãopois é isso que ele é na verdade — resistir às várias tentativas de conquista,agora consideradas tão inúteis que há centenas de anos ninguém tenta tomar
o Santuário de Shotover.
Trata-se de um lugar fedorento e asqueroso ao qual somente
os Lordes Redentores vão por livre e espontânea vontade.
Quem seriam
seus prisioneiros, então?
Essa, na realidade, é a palavra errada para os que
são levados para Shotover, pois sugere a existência de um crime, e nenhum deles transgrediu qualquer lei feita por Deus ou pelos homens. Eles também são diferentes de qualquer prisioneiro que você tenha visto antes: somente garotos com menos de 10 anos são levados para lá. Dependendo da idade em que entram, podem demorar mais de 15 anos para sair e, mesmo assim, apenas metade deles chega a tanto. A outra metade é despachada dentro de sacos azuis para ser enterrada em Ginky’s Field, um cemitério que começa atrás dos muros.
O
cemitério é amplo, estendendo-se a perder de vista, o que talvez possa lhe dar uma ideia do tamanho de Shotover e de como é difícil simplesmente continuar vivo ali.
Ninguém conhece toda a sua geografia e é tão fácil se
perder em meio aos seus corredores intermináveis e sinuosos quanto em um
deserto. Isso é agravado pelo fato de não haver mudança na paisagem — cada lugar é praticamente idêntico ao outro: marrom, escuro, sinistro e com cheiro de coisa velha e rançosa.
Parado em um desses corredores, um garoto olha pela janela,
segurando um saco azul-escuro grande. Tem algo entre 14 ou 15 anos de idade. Nem ele nem ninguém sabe ao certo.
Já não recorda como se chama de
verdade, pois todos os que chegam ali são rebatizados com o nome de um dos mártires dos Lordes Redentores — que são muitos, uma vez que, desde tempos imemoriais, todos os que eles não conseguiram converter os odeiam profundamente.
O menino que olha pela janela se chama Thomas Cale, embora
ninguém jamais use
seu primeiro nome e ele esteja cometendo um pecado
gravíssimo por fazê-lo.O que o atraiu para a janela foi o som do Portão Noroeste rangendo como sempre rangia nas raras vezes em que era aberto, como o gemido de um gigante com os joelhos terrivelmente doloridos.
Ele ficou
olhando enquanto dois Lordes com suas batinas negras atravessavam o portal, conduzindo um garotinho de cerca de 8 anos seguido por outro um pouco mais jovem e por um terceiro. Cale contou vinte ao todo antes que outra dupla de Redentores chegasse por último e o portão novamente se fechasse, lenta e artriticamente.
A expressão de Cale mudou à medida que ele se inclinava para
a frente,tentando enxergar as Terras Crestadas que se estendiam para além do portão que se fechava.
Ele havia estado do lado de fora dos muros
apenas seis vezes desde que chegara ali,
mais de uma década atrás — a criança
mais jovem já trazida para o Santuário, pelo que diziam.
Nas seis, tinha
sido protegido como se as vidas dos guardas dependessem disso (o que era verdade). Se tivesse fracassado em algum desses seis testes — pois eles não eram outra coisa —, teria
sido morto no ato. Da sua vida pregressa, Cale não tinha lembrança.
Quando o portão se fechou, ele tornou a focar sua atenção
nos meninos.Nenhum deles era gorducho, mas tinham os rostos arredondados de crianças pequenas.
Todos ficaram de olhos arregalados ao verem a
fortaleza, com seu tamanho descomunal e muros enormes. No entanto, embora estivessem perplexos e intimidados pela simples estranheza do ambiente, não sentiam medo.
O peito de Cale se encheu de emoções profundas e estranhas
que ele não conseguia nomear. Contudo, por mais que estivesse entregue a elas,
sua habilidade de manter uma orelha em pé para qualquer coisa que acontecesse ao seu redor
o salvou, como tantas vezes no passado.
Ele se afastou da janela e desceu o corredor.
— Você! Espere!
Cale parou e deu meia-volta. Um dos Redentores, enorme de
gordo, com dobras de pele pendendo sobre o colarinho, estava parado em um dos portais ao longo do corredor.
Vapores e sons estranhos saíam do aposento às suas costas. Cale olhou para ele, sua expressão inalterada.
— Venha cá e deixe-me ver seu rosto.
O menino andou na direção dele.
— Ah, é você — disse o Redentor gordo. — O que está fazendo
aqui?
— O Lorde Disciplinador me mandou levar isto até o tímpano.
— Ele
ergueu o saco azul que estava carregando.
— O que você disse? Fale pra fora!
É claro que Cale sabia que o Redentor gordo era surdo de um
ouvido e
falara baixinho de propósito.
Cale repetiu a frase, desta vez gritando a plenos pulmões.
— Está dando uma de engraçadinho, menino?
— Não, Redentor.
— O que você estava fazendo na janela?
— Na janela?
— Não pense que eu sou idiota. O que estava fazendo?
— Eu ouvi o Portão Noroeste sendo aberto.
— É mesmo, por Deus?
Isso pareceu distraí-lo.
— Estão adiantados — resmungou ele, contrariado, virando-se
e olhando de volta para a cozinha, pois era isto que era o gordo: o Lorde dos
Víveres,
supervisor da cozinha que alimentava com fartura os
Redentores e mal dava de
comer aos meninos. — Temos mais vinte para jantar — gritou
para a fumaça
malcheirosa às suas costas. Ele se voltou para Cale.
— Você estava pensando enquanto estava naquela janela?
— Não, Redentor.
— Estava sonhando acordado?
— Não, Redentor.
— Se pegar você vadiando novamente, Cale, eu vou arrancar
seu couro.
Entendido?
— Sim, Redentor.
O Lorde dos Víveres se virou para entrar na cozinha e
começou a fechar
a porta. Ao mesmo tempo, Cale falou baixinho, porém muito
claramente, de
modo que qualquer pessoa sem problemas de audição poderia
ter ouvido:
— Morra engasgado, seu dritsek cheio de banha.
O Redentor bateu a porta e Cale voltou a descer o corredor,
arrastando
o saco grande atrás de si. Levou quase 15 minutos, correndo
por boa parte do
caminho, até chegar ao tímpano, localizado ao final de um
pequeno corredor
à parte. Ele era chamado assim porque parecia mesmo um
tímpano, desconsiderando-se o fato de ter 1,80m de altura e estar embutido em
uma parede de
tijolos. Do outro lado dele, havia um ambiente isolado do
restante do Santu-
ário onde, segundo boatos, viviam 12 freiras que cozinhavam
somente para
os Redentores e lavavam suas roupas. Cale não sabia o que
era uma freira e
nunca tinha visto nenhuma, embora de vez em quando falasse
com uma delas através do tímpano. Ele não sabia o que diferenciava as freiras
das outras mulheres, das quais raramente se falava e, mesmo assim, sempre com
repulsa.
Havia duas exceções: a Irmã Sagrada do Redentor Enforcado e
a Santa Imelda
Lambertini que, aos 11 anos de idade, havia morrido de
êxtase durante sua
primeira comunhão. Os Redentores não explicavam o que
significava êxtase
e ninguém era idiota de perguntar. Cale rodou o tímpano, que
girou sobre o
próprio eixo, revelando uma grande abertura. Ele largou o
saco azul lá dentro
e o rodou novamente. Então, bateu na sua parede, fazendo-o
ressoar com
força. Aguardou trinta segundos e então uma voz abafada
falou do outro lado
da parede.
— O que foi?
Cale aproximou a cabeça do tímpano para ser ouvido, seus
lábios quase
tocando a parede.
— O Redentor Bosco quer este aqui de volta amanhã de manhã —
gritou ele.
— Por que não veio com os outros?
— Como você quer que eu saiba?
Ouviu-se um grito agudo e abafado de raiva vindo do outro
lado do
tímpano.
— Qual o seu nome, fedelho herege?
— Dominic Savio — mentiu Cale.
— Bem, Dominic Savio, eu vou denunciar você ao Lorde
Disciplinador
e ele vai tirar o seu couro.
— Estou pouco me lixando.
Vinte minutos depois, Cale estava de volta à sala de
treinamento do Lorde da Guerra. Ela estava vazia, com exceção do próprio Lorde,
que não ergueu
os olhos ou deu qualquer sinal de ter visto Cale. Ele
continuou escrevendo
em seu livro-razão por mais cinco minutos antes de falar, com
os olhos ainda
baixados.
— Por que você demorou tanto?
— O Lorde dos Víveres me parou no corredor da ala externa.
— Por quê?
— Acho que ele ouviu um barulho lá fora.
— Que barulho? — perguntou o Lorde da Guerra, olhando
finalmente
para Cale. Seus olhos eram de um azul-claro, quase
cristalino, mas afiados.
Não deixavam muita coisa passar. Ou nada.
— O Portão Noroeste estava sendo aberto para a entrada dos
novatos.
Ele não esperava que fossem chegar hoje. Me parece que ficou
de ovo virado.
— Controle sua língua — disse o Lorde da Guerra, embora
tenha falado
com brandura, considerando a rispidez habitual. Cale sabia
que ele detestava
o Lorde dos Víveres e, por isso mesmo, achava menos perigoso
se referir a um
Redentor naqueles termos.
— Eu perguntei ao seu amigo sobre o boato de que eles haviam
chegado
— disse o Redentor.
— Eu não tenho amigos — respondeu Cale. — É proibido.
O Lorde da Guerra deu uma risadinha; um som nada agradável.
— Você não me preocupa nesse sentido, Cale. Mas, já que
precisa ser
difícil: o loiro magricela. Como vocês o chamam?
— Henri.
— Eu sei o nome de batismo dele. Mas vocês lhe deram um
apelido.
— Nós o chamamos de Henri Embromador.
O Lorde da Guerra riu, porém, desta vez podia se ouvir o eco
de um bom
humor normal.
— Muito bem — disse ele, satisfeito. — Eu lhe perguntei a
que horas os
novatos chegariam e ele disse que não sabia ao certo, em
algum momento entre
as oito e as nove badaladas. Então, quis saber quantos
viriam e ele respondeu
por volta de 15, talvez mais. — Ele fitou dentro dos olhos
de Cale. — Eu lhe
dei uma surra para ele aprender a ser mais específico da
próxima vez. O que
você acha disso?
— Não faz diferença para mim, Redentor — respondeu friamente
Cale.
— Ele mereceu qualquer castigo que o senhor tenha aplicado.
— É mesmo? Que gratificante você pensar dessa forma. A que
horas eles
chegaram?
— Pouco antes das cinco.
— Quantos?
— Vinte.
— De que idade?
— Nenhum com menos de 7 e nenhum com mais de 9.
— De que raças?
— Quatro mezos, quatro uitlanders, três folders, cinco
mestiços, três
miamis e um que não consegui identificar.
O Lorde da Guerra grunhiu como se estivesse apenas
ligeiramente satisfeito que todas as suas perguntas tivessem sido respondidas
com tanta precisão.
— Vá até a mesa. Preparei um enigma para você. Dez minutos.
Cale se encaminhou para um mesa grande, de 6 x 6 metros , sobre a
qual o Lorde da Guerra havia desenrolado um mapa que caía um
pouco pelas beiradas. Era fácil reconhecer algumas das coisas desenhadas nele —
colinas,
rios, florestas —, porém, no restante do espaço, havia
diversos bloquinhos de
madeira com números e hieróglifos escritos, alguns em ordem
e outros aparentemente misturados. Cale analisou o mapa pelo tempo que lhe foi
concedido,
erguendo os olhos em seguida.
— E então? — disse o Lorde da Guerra.
Cale começou a montar sua solução.
Vinte minutos depois havia acabado, suas mãos ainda
estendidas diante
do corpo.
— Muito engenhoso. Impressionante, até — disse o Lorde da
Guerra.
Algo mudou nos olhos de Cale. Então, com uma velocidade
extraordinária, o
Redentor açoitou a mão esquerda do menino com um cinto de
couro salpicado
de tachinhas minúsculas, porém grossas.
Cale se encolheu e seus dentes trincaram de dor. No entanto,
logo seu
rosto retornou à frieza vigilante habitual, a única coisa
que o Redentor via nele
ultimamente. O Lorde da Guerra se sentou, analisando o
menino como se ele
fosse um objeto ao mesmo tempo interessante e
insatisfatório.
— Quando você vai aprender que fazer a coisa mais
inteligente, mais original, significa apenas estar à mercê do seu próprio
orgulho? Essa solução pode
funcionar, porém, é arriscada demais. Você conhece muito bem
a solução consagrada para este problema. Na guerra, uma vitória insossa é
sempre melhor do
que uma vitória brilhante. Já está na hora de você começar a
entender por quê.
Ele esmurrou a mesa, furioso.
— Você se esqueceu que um Redentor tem o direito de matar no
ato
qualquer menino que faça algo de inesperado?
Ouviu-se outro estrondo quando ele esmurrou a mesa
novamente, levantando-se e fuzilando Cale com o olhar. Um pouco de sangue
pingava dos
quatro buracos na mão esquerda ainda estendida do menino.
— Nenhum dos outros o trataria com tanta condescendência
quanto eu.
O Lorde Disciplinador está de olho em você. De tempos em
tempos, ele gosta
de dar um exemplo. Você quer terminar como um Ato de Fé?
Cale ficou olhando para a frente, sem dizer uma palavra.
— Responda!
— Não, senhor.
— Você se acha importante, seu Zed inútil?
— Não, senhor.
— É minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa — disse o
Lorde da Guerra, batendo três vezes no peito com a mão. — Você tem 24 horas
para refletir sobre seus pecados e então irá se humilhar perante o Lorde
Disciplinador.
— Sim, Redentor.
— Agora saia daqui.
Largando as mãos dos
lados do corpo, Cale deu meia-volta e andou até
a porta.
— Não sangre no tapete — falou o Lorde da Guerra enquanto
ele ia
embora.
Sozinho no seu cubículo, o Redentor ficou observando a porta
se fechar.
Quando ouviu o clique do trinco, a raiva mal contida em seu
rosto se transformou em curiosidade reflexiva.
No corredor, Cale ficou parado por um instante sob a luz
marrom tenebrosa que infestava todas as partes do Santuário e examinou sua mão
esquerda.
As feridas não eram profundas porque as tachas no cinto eram
feitas para causar dor intensa sem que os machucados demorassem a sarar. Ele
cerrou a mão
em um punho e a apertou; à medida que o sangue pingava em
gotas pesadas no
chão, sua cabeça tremia como se um pequeno terremoto
estivesse acontecendo
no fundo do seu crânio. Então, relaxou a mão e, sob a luz
sinistra, uma expressão de desespero atroz atravessou seu rosto. No instante
seguinte ela havia
desaparecido e Cale continuou descendo o corredor, sumindo
de vista.
Nenhum dos meninos no Santuário sabia quantos iguais a eles
havia ali.
Alguns diziam que o número chegava a 10 mil e crescia a cada
mês. Mesmo
entre os que beiravam os 20 anos de idade, havia um consenso
que, antes dos
últimos cinco anos, o número, fosse ele qual fosse,
permanecera constante. No
entanto, desde então ele vinha crescendo. Os Redentores
haviam mudado sua
maneira de agir, o que por si só era estranho, além de mau
sinal: velhos hábitos
e conformidade com o passado eram para eles tão naturais
quanto o ar que
se respira. Cada dia deveria ser como o dia seguinte e cada
mês como o mês
seguinte. Um ano jamais deveria ser diferente do outro.
Contudo, o aumento
significativo no número de meninos exigira mudanças. Os
dormitórios tinham
sido reformados com beliches de dois e até mesmo três catres
para acomodar os
recém-chegados. Os cultos divinos eram realizados por
escalas, de modo que
todos pudessem rezar e receber os conselhos contra a danação
todos os dias.
Também as refeições passaram a ser feitas em turnos. Porém , os
meninos não
faziam ideia dos motivos por trás dessas mudanças.
Cale, com a mão esquerda envolvida em um pedaço de linho
sujo que
os lavadores de pratos haviam jogado fora, atravessou o
refeitório imenso para a segunda refeição do dia carregando uma bandeja de
madeira. Atrasado, mas
não muito — caso contrário teria sido surrado e expulso dali
—, ele seguiu
em direção à mesa grande no fim do salão, onde sempre comia.
Parou atrás
de outro menino, aproximadamente da mesma idade e altura que
ele, mas
tão concentrado em comer que não percebeu Cale em pé às suas
costas. Só se
deu conta quando viu que os outros meninos à mesa estavam
com as cabeças
levantadas. Ele ergueu os olhos.
— Desculpe, Cale — disse ele, empurrando os restos de comida
para
dentro da boca ao mesmo tempo que saía de trás do banco e se
apressava em ir
embora, carregando sua bandeja.
Cale se sentou, olhando para o seu jantar: havia algo nele
que parecia
uma salsicha, mas não era, coberto por um molho aguado junto
com algum tubérculo indeterminável, embranquecido após ferver eternamente em
uma papa
amarelada e anêmica. Em uma tigela ao lado daquilo, havia
mingau — gelatinoso, frio e cinza como neve derretida de uma semana atrás. Por
um instante,
apesar de faminto, ele não conseguiu se forçar a comer.
Então alguém abriu
caminho aos empurrões até o assento ao seu lado. Cale não
olhou para o menino, mas começou a atacar a comida. Somente depois de uma
pequena mordida
com o canto da boca ele descobriu o que era aquela coisa
nojenta.
O menino que se acotovelara para sentar ao seu lado começou
a falar,
mas com uma voz tão baixa que somente Cale conseguia ouvir.
Não era prudente ser pego conversando com outro menino durante as refeições.
— Eu descobri uma coisa — disse o menino, a empolgação clara
na sua
voz, embora ela fosse quase inaudível.
— Bom para você — respondeu Cale com frieza.
— Uma coisa maravilhosa.
Desta vez, Cale não demonstrou reação alguma,
concentrando-se em
mandar o mingau goela abaixo sem ter engulhos. O menino fez
uma pausa.
— Eu encontrei comida. Do tipo que dá pra comer. — Cale mal
ergueu
a cabeça, mas isso bastou para que o menino ao seu lado
soubesse que tinha
vencido.
— Por que eu deveria acreditar em você?
— Henri Embromador estava comigo. Nos encontre às sete atrás
do Redentor Enforcado.
Com essas palavras, o menino se levantou e foi embora. Cale
ergueu a
cabeça e uma expressão estranha de anseio tomou conta do seu
rosto, tão diferente da máscara fria que ele geralmente mostrava para o mundo
que o menino
sentado à sua frente o encarou.
— Você quer isso, não quer? — disse o menino, seus olhos
brilhando de
esperança como se a salsicha rançosa e o mingau
verde-esbranquiçado oferecessem mais prazer do que a mente de Cale era capaz de
vislumbrar.
Cale não respondeu ou olhou para o menino, mas voltou a
comer, for-
çando-se a engolir e tentando não passar mal.
Quando terminou, ele levou a bandeja de madeira ao lavadouro
e a esfregou na bacia com areia, devolvendo-a à sua prateleira. Enquanto saía,
observado por um Redentor sentado em uma cadeira alta imensa da qual podia
inspecionar o refeitório, Cale se ajoelhou diante da estátua do Redentor
Enforcado,
bateu três vezes no peito e murmurou: “Eu sou um Pecado, eu
sou um Pecado,
eu sou um Pecado”, sem dar a menor atenção ao significado
dessas palavras.
Estava escuro lá fora, e a neblina noturna havia descido
sobre o Santuá-
rio. Isso era bom; seria mais fácil para Cale passar
despercebido pelo púlpito até
os arbustos que cresciam atrás da grande estátua.
Quando chegou ali, Cale já não conseguia enxergar nem 5 metros diante do seu
nariz. Ele desceu do púlpito até o
caminho de cascalhos diante da
estátua.
Aquele era o maior de todos os cadafalsos sagrados do
Santuário, sendo que provavelmente havia centenas deles, alguns de não mais que
poucos
centímetros, pregados às paredes, montados em nichos,
decorando as tinas de
cinzas sagradas ao final de cada corredor e nos vãos que
encimavam cada porta.
Eles eram tão comuns e tão comentados que a imagem em si há
muito perdera
qualquer sentido. Ninguém, exceto pelos novatos, chegavam a
notá-la pelo que
era de fato: a representação de um homem pendurado numa
forca com uma
corda em volta do pescoço, seu corpo riscado pelas
cicatrizes das torturas que
antecederam a execução, suas pernas quebradas pendendo em um
ângulo estranho no ar. Os cadafalsos sagrados do Redentor Enforcado feitos na
época da
fundação do Santuário, mil anos antes, eram toscos e tendiam
a um realismo
explícito: um terror nos olhos e no rosto, apesar da falta
de habilidade do escultor; o corpo retorcido e devastado, a língua saltando da
boca. Essa, segundo
os escultores, era uma maneira terrível de se morrer. Com o
passar dos anos,
as estátuas se tornaram mais requintadas, mas também mais
insossas. A grande
estátua, com suas forcas imensas, sua corda grossa e o
messias de 6 metros
de
altura suspenso na ponta dela tinha apenas 30 anos de idade:
os vincos nas suas
costas eram salientes, porém, limpos e sem sangue. Suas
pernas não estavam
esmagadas de forma aflitiva, mas posicionadas como se ele
estivesse sentindo
câimbras. Contudo, o mais estranho era a expressão no seu
rosto — em vez da
dor do estrangulamento, ele transmitia uma espécie de
santidade incomodada, como se um ossinho estivesse preso na sua garganta e ele estivesse
tentando
soltá-lo com uma tosse discreta.
No entanto, em meio à neblina e à escuridão daquela noite, a
única coisa
que Cale conseguia ver do Redentor eram os seus pés enormes
suspensos na
névoa branca. A estranheza daquilo o deixou apreensivo.
Tomando cuidado
para não fazer barulho, Cale se embrenhou nos arbustos que o
ocultariam de
qualquer um que passasse por ali.
— Cale?
— Sou eu.
Kleist, o menino do refeitório, e Henri Embromador surgiram
de dentro
dos arbustos à sua frente.
— É melhor que isso valha a pena o risco, Henri — sussurrou
Cale.
— Vale sim, Cale. Eu prometo.
Kleist gesticulou para Cale, chamando-o para entrar nos
arbustos. Estava
mais escuro ainda ali e Cale teve que esperar seus olhos se
ajustarem. Os outros
dois aguardaram. Então, uma porta surgiu diante deles.
Isso era espantoso — embora houvesse muitos portais no
Santuário, quase não havia portas. Durante a Grande Reforma de duzentos anos
atrás, mais
da metade dos Redentores foi queimada na fogueira por
heresia. Temendo que
os apóstatas pudessem ter contaminado seus meninos, a seita
vitoriosa dos Redentores os degolou para não correr nenhum risco. Uma vez
reabastecidos de
novos jovens, os Redentores fizeram muitas mudanças, e uma
delas foi retirar
todas as portas de qualquer parte do Santuário em que
houvesse garotos.
Afinal, de que servem as portas onde existem pecadores?
Portas escondem as coisas. Elas possibilitam vários comportamentos diabólicos,
decidiram
os Redentores, como guardar segredos e ficar sozinho ou na companhia
de
terceiros aprontando sabe-se lá o quê. O próprio conceito
por trás de uma porta, pensando melhor, começou a fazê-los tremer de raiva e
medo. Até o diabo
já não era representado apenas como uma besta com chifres,
mas também, e
quase com a mesma frequência, como um retângulo dotado de
uma fechadura. É claro que essa antipatia em relação às portas não se aplicava
aos próprios
Redentores: a presença de uma delas em seus locais de
trabalho e nos cubículos
em que dormiam era, por si só, um sinal de redenção. Para
eles, a santidade
era medida pelo número de chaves que lhes era permitido
carregar na corrente
em volta da cintura. Se você tilintasse ao caminhar, seu
lugar no céu já estava
garantido.
É por isso que a descoberta de uma porta desconhecida era
algo
extraordinário. À medida que seus olhos se habituavam à
escuridão, Cale conseguia ver
uma pilha de reboco despedaçado e tijolos esfarelados ao
lado da porta.
— Eu estava me escondendo de Chetnik — disse Henri
Embromador.
— Foi assim que achei este lugar. O reboco estava soltando
naquele canto,
então eu fui mexer nele enquanto esperava. Estava caindo aos
pedaços de tão
infiltrado. Não demorou nada pra sair.
Cale estendeu o braço em direção à beirada da porta e a
empurrou com
cuidado. Então a empurrou novamente. E novamente.
— Está trancada.
Kleist e Henri Embromador sorriram. O primeiro enfiou a mão
no bolso
e retirou algo que Cale nunca tinha visto aos cuidados de um
menino — uma
chave. Àquela altura, os olhos dos três estavam brilhando de
entusiasmo. Kleist
colocou a chave na fechadura e a girou, grunhindo por conta
do esforço. Então, com um barulho surdo, ela se moveu.
— A gente passou três dias enchendo essa porta de graxa e
tudo o mais
para ela abrir — disse Henri Embromador, sua voz cheia de
orgulho.
— Onde vocês conseguiram a chave? — perguntou Cale. Kleist e
Henri
Embromador estavam adorando o fato de Cale estar falando com
eles como se
tivessem ressuscitado os mortos ou caminhado sobre as águas.
— Eu conto depois que a gente entrar. Venham. — Kleist
encostou o
ombro na porta e os outros dois fizeram o mesmo. — Não
empurrem com
muita força, as dobradiças podem estar enferrujadas. Não
queremos fazer barulho. Vou contar até três. — Ele fez uma pausa. — Preparados?
Um, dois,
três.
Eles empurraram e, com um rangido, a porta se moveu. Os três
recuaram, sobressaltados. Ser ouvido era o mesmo que ser pego, e ser pego era o
mesmo que sofrer só Deus sabia o quê.
— Nós podemos ser enforcados por isso — disse Cale. Os
outros dois o
encararam.
— Eles não fariam uma coisa dessas. Não um enforcamento. —
falou
Henri Embromador.
— O Lorde da Guerra me disse que o Disciplinador estava
procurando uma desculpa para dar um exemplo. Já faz cinco anos desde o último
enforcamento.
— Eles não fariam uma coisa dessas — repetiu Henri, chocado.
— Fariam, sim. Pelo amor de Deus, isto é uma porta. Vocês
estão com
uma chave. — Cale se voltou para Kleist. — Você mentiu para
mim. Não faz
a menor ideia do que tem aí dentro. É provavelmente um beco
sem saída, sem nada que valha a pena roubar e nada que valha a pena saber. —
Ele se virou
para encarar o outro menino. — Isso não vale o risco, Henri,
mas o pescoço é
seu. Eu estou fora.
Assim que ele começou a dar meia-volta, uma voz chamou do
púlpito,
irritada e impaciente.
— Quem está aí? Que barulho é esse?
Então, eles ouviram o som de um homem pisoteando o caminho
de cascalhos em frente ao Redentor Enforcado.